Por trás da porteira – Parte III

Texto por: Publicado em: 8 de fevereiro de 2024

O que os produtores têm feito para sobreviver dentro de um cenário tão incerto, depois de tantos desafios e de muitos outros a serem enfrentados?

 Sucessão familiar

A sucessão familiar é um gargalo para muito produtores rurais, depois de anos dedicados à agropecuária. Permanecer na atividade ou mudar de atividade não é uma decisão fácil, mas a opção por deixar a pecuária leiteira foi a escolha do veterinário e produtor Marcelo Cassoli, da Fazenda Capetinga, em São João Batista do Glória.

Marcelo focou seu trabalho nos pilares: “produzir qualidade com felicidade” e com produção de pequena a média escala. Embora tenha conquistado reconhecimento pela qualidade de seus produtos, ele encerrou a sua atividade há um ano, em fevereiro de 2023.  “Chegamos ao ponto final da nossa atividade leiteira, devido ao fato de não termos sucessão familiar futura que dê continuidade ao negócio”, observou.

Marcelo Cassoli, da Fazenda Capetinga

O veterinário também destacou a importância de encerrar as atividades quando tudo estava bem. “Sabemos que causa espanto essa decisão, e levanta dúvidas sobre a saúde financeira da fazenda, sobre a viabilidade da ordenha robotizada e sobre a própria viabilidade da atividade leiteira, uma vez que a fazenda se tornou referência para muitas pessoas. O fato é que o melhor momento de parar é quando tudo está bem, pois negócio bom é o que se vende bem”, frisou.

A decisão foi bem planejada e o produtor estudou outras opções, como a criação de um condomínio de produção, mas a falta dessa cultura na região e pendências na organização familiar do negócio abortaram esse projeto. “O fato de ser técnico na área e ter tido experiências únicas em associação de produtores (trabalhei como extensionista da Casmil e depois na Aproleite) e no Sindicato Rural do Glória, me deu visão privilegiada da situação e dos rumos da atividade leiteira, facilitando minha orientação de fecharmos o negócio. Somados ao fato da não sucessão familiar, também pesou a escassez cada vez mais certa de mão-de-obra qualificada e compromissada, a escassez e altos custos das terras para arrendar (limitando nossa expectativa de crescimento de escala), e a falta de linhas compatíveis de financiamento da atividade. Na verdade, posso dizer que deu sim um frio na barriga bater o martelo e dizer: vamos fechar, mas foi mais pela mudança de setor de negócio que entraríamos depois, do que pelo fato de deixar a atividade em si. Por outro lado, também fiquei tranquilo de tomar esta decisão, pois já havia feito uma boa trajetória pelo setor leiteiro em vários níveis, e acredito ter deixado um bom legado”.

Sobre a sucessão familiar, Marcelo destaca que a questão é sorrateira, pois quando o produtor percebe, já está com um problema difícil de resolver. “É característico do meio rural a simplicidade, a humildade, a generosidade, e não pensamos muito quando queremos ajudar um filho, um irmão ou um primo (casos mais comuns), alocando os mesmos no negócio, desconhecendo as implicações jurídicas futuras, principalmente em relação a situações imprevistas e/ou indesejáveis (falecimentos, casamentos, divórcios, filhos, etc.). É preciso que o produtor tenha orientação sobre como conduzir essas questões jurídicas do negócio, até mesmo para que tenha um horizonte a seguir. Família é uma coisa, negócio, mesmo familiar, é outra. Sucessão não é simplesmente saber educar os filhos para que tenham gosto pelo negócio e perpetuem o mesmo”. Para Marcelo, a sucessão sem dúvida é um dos fatores mais importantes em relação à saída de produtores da atividade, não só do leite, não só do agro. “Mas não diria ser o mais importante”.

Na pecuária leiteira, na análise de Marcelo, existem problemas culturais (qualidade do leite, sanidade do rebanho, eficiência zootécnica, gestão), de mercado, de logística, de escala, de exigências ou preferências (e até ignorância) dos “novos” consumidores. “A cadeia do leite sofre nas mãos dos atacadistas e não temos no Brasil uma válvula de escape significativa de exportação, dependemos do mercado interno. Os laticínios, imaturos, não ajudam e não se ajudam, muito pelo contrário, criam um mercado predatório e repassam a conta aos produtores sempre que a mesma aperta (e alguns ainda importam leite o quanto e como querem, sem qualquer pudor e respeito aos produtores que sempre lhes salvam)”.

Para o produtor, essas questões mostram que, a cada ano e cada vez mais rápido, vemos a necessidade de escala de produção. O leite, assim como outros setores de proteína animal (ovos, corte, suínos, frango), está cada vez mais passando para as mãos de poucos (e enormes) produtores. “Quem é pequeno e se sujeita a trabalhar todos os dias – até que a saúde permita ou até que um filho assuma – vai permanecendo a duras custas ou procurando nichos de mercado (como o queijo Canastra, por exemplo). Quem está no meio e não tem escala significativa, ou não tem capacidade de investir e crescer muito rápido, fica na incerteza se a luz que aparece no fim do túnel significa esperança ou uma locomotiva de mercado, instabilidade climática, custos de produção, que vai atropelá-lo.”

Marcelo observa que a missão da fazenda era de sempre ‘Produzir Qualidade com Felicidade’, mas não estavam atingindo o conceito. “Estávamos coerentes com a qualidade no leite, mas ao não ver continuidade no negócio, eu sempre me perguntava: Até quando vou me sacrificar por algo que vai acabar? Isso me entristecia e desmotivava, não estava coerente com a felicidade, apesar de eu ter consciência de que felicidade não é uma constante, todos temos os altos e baixos. Mas eu tinha consciência de que precisava apostar em novos desafios e, principalmente, criar um negócio onde eu poderia dar oportunidade aos mais jovens e, assim, garantir sua perpetuidade. Assim nasceu a Agrotimize Agricultura de Precisão. Vamos, então, continuar seguindo nossa missão de produzir qualidade com felicidade”.

Produção em grande escala

A Fazenda Reunidas Antônio Carlos Pereira Filhos e Netos é um exemplo de processo sucessório bem realizado. A empresa, que é uma das maiores produtoras de leite do país, foi criada há 64 anos pelo produtor Antônio Carlos Pereira. Ele começou pequeno, cresceu, investiu no leite B, que significava a qualidade na época, e formou os filhos que foram trabalhar na atividade.

Com política própria de crescimento a cada membro da família que ingressa na atividade, a produção leiteira, o carro chefe da fazenda, está atualmente na casa de 55.000 litros/dia. Ao longo do tempo, a família cresceu e os netos foram se integrando na atividade. Além do leite, a fazenda também produz café, cereais, cachaça, peixes, gado de corte e energia elétrica. A propriedade utiliza 100% de energia renovável.

Com a experiência de pai para filho em mais de seis décadas, o grupo viveu momentos bons e ruins ao longo desse tempo. Para Leonardo Kraus Pereira, um dos netos que trabalha na administração das ações do grupo, locado na Fazenda Capão Alto, o ano de 2023 foi de muita cautela. “Foi necessário cancelar alguns investimentos que estavam previstos e segurar os gastos em todos os setores. Infelizmente, segurando investimentos, automaticamente, restringe a oferta de empregos e assim por diante”.

O exemplo do grupo para enfrentar as adversidades vem dos ensinamentos do avô, Antônio Carlos Pereira. “A principal ferramenta para manter-se na atividade, como dizia meu avô, é acordar cedo e trabalhar. Estar junto do negócio, evitando desperdícios e otimizando ao máximo a atividade”, destacou Leonardo.

Leonardo Krauss Pereira

Para eles, a expectativa para 2024 é de um ano melhor. “Sabemos, porém, que com os rumos políticos do nosso país, teremos anos de total instabilidade, insegurança jurídica e a falta de crédito para produção. Isso nos preocupa e nos faz tomar decisões de “pé no freio”, prejudicando a atividade e todo o meio em que atuamos”.

Entre baixos e altos no RS

A produção familiar dos Nascimento, em Joia, Noroeste do Rio Grande do Sul, cresceu depois de enfrentarem muitas adversidades. Nicanor e Fabrício, pai e filho, começaram na atividade em 1998 com cinco vacas, sendo duas delas emprestadas, entregando o leite na fazenda de um vizinho. Apesar de toda essa adversidade inicial, eles consideraram a atividade promissora e investiram um pouco mais. Compraram mais três vacas e um resfriador.

Quando tudo parecia caminhar bem, uma crise de aftosa no município fez com que descartassem o leite por cinco meses, mesmos estando distante do foco e fora do raio de 3 km, conforme determina a legislação. Mas, não desistiram. Voltaram a vender o leite com toda a dificuldade inicial que incluía a sanitização dos carros todos os dias, pelo exército.

A partir de 2009, a fazenda entrou em uma nova fase com a especialização dos produtores através de cursos e assistência veterinária e gerencial. “A partir desse momento tudo começou a evoluir. Desde 2016, eu tenho buscado ajudar meus colegas produtores a se manter na atividade, com lucro e satisfação. Eu sempre digo que não devemos buscar somente o lucro, mas estar satisfeito com o que fazemos”.

Segundo o produtor, o leite é a atividade rural que mais se consegue extrair lucro por hectare na sua região, comparado com a soja, que é forte no município. “A atividade exige bastante, mas nós a consideramos bem lucrativa. Os desafios são grandes, mas seguindo a recomendação da assistência técnica e fazendo a gestão bem feita, conseguimos. Focamos principalmente na alimentação e mantemos estoque de comida para o rebanho. Trabalhamos no sistema a pasto com suplementação no cocho. Precisamos ter estoque de alimento, para mantermos o custo com alimentação mais baixo”.

A fazenda trabalha com dois tipos de pastagem: de verão e de inverno e Fabrício destaca que é preciso ter um bom manejo de solo e animais que responderão em produção. “São elementos que fazem o lucro ser uma consequência. O preço judia bastante, mas não está em nossas mãos. Focamos sempre no que está em nossas mãos, porque sempre temos o que melhorar. Querer produzir mais e melhor depende apenas de nós e não do preço. É claro que, se o preço fosse melhor, teríamos como fazer mais investimentos, mas mesmo com o preço defasado conseguimos fechar 2023 positivo, graças a compras antecipadas e bem-feitas. As compras são responsáveis por boa parte dos lucros”.

Todas essas informações, Fabricio disponibiliza nas suas redes sociais (@fabricionascimento31) e em palestras para mostrar como vencer a crise, seja ela climática ou de preço. “O que esperamos para 2024 é que o preço continue a crescer, para que possamos fazer novos investimentos e trazer mais bem-estar pra os animais, o que consequentemente chega até as pessoas através dos produtos. É, claro, com lucro e satisfação”.

Fabrício Nascimento

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